segunda-feira, 23 de maio de 2022

Trois en Deux

 


  A erudição concebida nos elementos é tão brilhante quanto arriscada, suporte a enganosa calmaria do cadente piano, suporte-a a fim de abrir os olhos para a lúcida crueldade, é preciso mesclar austeridade com manhosa improvisação para resistir à tenacidade da tempestade dos taróis simulados pelos tons da bateria, a gloriosa sinfonia dos cellos sintetizados selam as poderosas potestades que contaminam pensamentos através dos ares, trombetas e trompas também sintetizadas anunciam o despertar de principados, a perturbadora maestria percussiva da desvairada regente conduz a orquestra ao gênese e ao ômega, já o público regido não teme o alfa e nem tampouco o juízo final, não teme, pois já teme o fim do concerto, pois toda ópera, ballet e espetáculo como o de hoje tem o seu fim.

 Mas antes que acabe, o público em meio a harmoniosa dissonância da perfeita performance entre graves bends e melódica percussão, sabe que ainda que a corda rompesse, ainda que a baqueta quebrasse, ainda que a tecla cedesse, ainda que a partitura voasse, o terno duo de modo malicioso prosseguiria com acordes melódicos, não sucumbiria diante de negativos contratempos que pudessem surgir em meio ao efêmero concerto.

 Em dados momentos a regente propõe notas dissonantes e descompassadas, o regido publico sutilmente desobedece ao arbitrário sinal e segue a dança no andamento original, enquanto o dó bemol e o mi sustenido equilibram os sofisticados movimentos da impetuosa regente, tal equilíbrio traz bom ânimo aos componentes da sinfonia, traz tranquilidade à "hermosa" comunicação entre a dupla de três, logo, os expectadores presentes que assistem ao erudito concerto na renascentista sala, vislumbram o desfecho do espetáculo, suas mãos coçam por aplausos, sofrendo por antecipação pelo bom momento próximo de seu fim.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Dama de Copas.



  Virou o valete, mas a carta que preciso é um rei de espadas, não vou aqui culpar a falta de sorte, é preciso também certa habilidade nesse jogo de blefe, nem sei mais qual é o placar, já perdi a conta, o ponteiro do relógio avança ferozmente e revela que não há aqui alguém ligado nesse jogo, a atenção está na temperatura do chope e nas minhas palavras que descrevem aquela maldita passagem, enquanto eu falo um pouco mais sobre aquele cabelo vermelho, o rei de espadas enfim surge mas não impede que eu prossiga a dizer sobre o movimento ardil imposto por aquele caminhar, uma passagem quase que um desfile, justamente no início da noite, o que destacou os cabelos em tom de cobre, que reluziu em harmonia com os verdes olhos promovendo assim uma face eclesiástica.

  Surge então a dama de copas, a arte impressa nas cartas segue há séculos a tradição das figuras do renascimento, o que faz com que um dos ouvintes me diga que na verdade eu estava descrevendo a dama de copas que acabara de surgir na mesa, entendi então a origem do impacto daquele ligeiro encontro, Michelangelo e da Vinci certamente encontraram com os ancestrais daquela moça, a dureza do regime monárquico, a difícil era dos reis não impediu tais artistas de pincelar suas musas, de expressar o efeito que também senti séculos depois, se trata de uma dádiva hereditária, uma força milenar que avançou através dos tempos para assombrar o dias hoje.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Reluzente


 Em terra de arranha céu, banners luminosos, semáforos, leds e lustres monumentais ornamentam a iluminada cidade, em meio a essa eletrecidade há também espaço para a obscuridade, para o lado negro da força.

Forças regem o bom fluxo da cidade à luz da lei, por detrás das cortinas novas forças formam uma cidade à luz da lua. Veja ali a função naquele beco, a garrafa de vinho seco passa de mão em mão em torno de uma flamejante fogueira que aquece esta fria segunda-feira, resta saber o que eles planejam em volta daquela sombria roda viva.

Já aqui na fogueira sou bem-vinda, a presença hostil dos presentes marginais pouco assusta, quem se assustou foi a fogueira, o sinuoso fogo deu lugar a minha discreta luz, captei o oculto amor escondido nessa roda e dei novo tom e calor pra esse obscuro debate.

 Parti em retirada, minha despedida não foi evitada, não houve ali quem ousasse por a prova minha força e evitar minha partida, o olhar de graciosidade acalmou a tormenta dos presentes, não houve então a necessidade de usar da intimadação do olhar, o mesmo ohar que repele graciosamente é mesmo olhar que seduz de modo violento.

Nas calçadas e vielas adiante, vil elas eram aos olhos inquisidores, no meio delas vi que a vida fácil de fácil nada tinha, bondosas belas madalenas subordinadas da própria coragem e necessidade.

Mais abaixo já no coração dessa elétrica cidade encerro meu passeio, a baixa luz dos bastidores me iluminou, esclarecida e cheia de desejo vou pra casa descansar e poupar minha luz, me manter acesa para os dias de escuridão que iluminam essa tenebrosa cidade.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Requiem por acidente

  

  Acerta esse tom e vamos lá, pensando bem deixe assim como está, esse acorde menor transmite bem a profundidade deste momento, daquele tormento, confesso que um tarol viria a calhar pra ritmar essa bela trilha eclesiástica que nasce acidentalmente sugerindo assim um requiem, como se o ruído dos trilhos daquele enorme portão fossem trombetas que anunciam a tão esperada aparição, eis então que o portão feito um portal revela aquela presença que surge de modo fatal, ao contrário do acidente que nos trouxe essa bela trilha, maldito foi o som do trilho daquele portão sem brilho, daquele portão que após o inesperado surgimento se fez radiante, discrepante como esse acorde dissonante, o agora esplendoroso portal no brilho daquela escuridão trouxe uma estranha sintonia, já esse acidental acorde acordou uma funesta canção que tomou o lugar do que era pra ser uma cantiga em sinfonia.

  É tarde demais, repita pela última vez esses acordes em sequência, após esse som e o confronto com aquela presença resta apenas colher as consequências.  

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Lenitivo



  Ao desembarcar em Kattegat, o navegante viking calorosamente saudado no porto pelas mocinhas francesas, jovens polacas e por batalhões de loiraças, surge sob a vertigem do ópio ao qual se viciou, ópio que lenia a ferida de guerra que o atormentava, o brado em saudação a chegada do aplaudido guerreiro nórdico foi silenciado pela brisa hipnótica na qual ele estava submerso, as pupilass contraídas o impediam de testemunhar a plenitude da festividade que lhe fora oferecida por seus simpatizantes, o Dragão do mar estava em um multiverso alheio àquela festança que o aclamava, tempo e espaço distorcidos, o triunfo de sua revolução confundia-se com o fracasso do seu universo introspectivo, seu mundo agora era paralelo, prazeres e medos dependiam de mais algumas boas doses daquela substância que o amparou nos momentos de dor, daquelas doses que o inspirou rumo a vitória.

 Séculos depois outro herói encontrou nas substâncias químicas o necessário repouso, metralhadoras de flashes  que castigavam os olhos insóbrios do anjo de pernas tortas só eram suportadas por conta do profundo grau etílico ao qual o herói do  bi campeonato mundial estava mergulhado, aquele maldito afã de seus fãs era um grande tormento ao amado Mané, a lisura e habilidade mostradas dentro de campo não tinham a mesma eficácia para driblar a imprensa e escapar da sufocante perseguição, imprensa e fãs entristecidos por presenciarem um ídolo, um grande atleta entregue a embriaguez profunda, mas eles mal sabiam, não fosse esse mesmo composto alcoólico, Garrincha não teria encontrado a necessária inspiração para nos levar a conquistar o mundo no Chile em 1962.

 Não se pode negar que as drogas ao longo dos séculos tiveram grande contribuição no mundo da arte, elas traziam aquele estímulo a mais, a capacidade criativa escondida no âmago do artista era despertada pelo poder das drogas, as substâncias entorpecentes iluminavam a mente perdida na dor e com isso a obra de arte era beneficiada pela inspiração catalizada pela magia das substâncias químicas.

 Na arte da Guerra e na arte da bola, Ragnar Lothbrock assim como Mané Garrincha escondiam por detrás das drogas um rosto de mulher, o rosto que surgia sob o efeito da droga que inspirava o desembainhar da espada, que inspirava o arremate certeiro que estufava as redes. A dependência se justifica então, pois o uso abusivo do ópio e do álcool era a fuga da dor presente, mas por outro lado também era a busca pelo prazer ausente.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Burn


 O picar dessa cebola trouxe à mesa o pecado da ira, sua péssima coordenação motora ao moer esse punhado de ervas finas não é razão suficiente para explicar minha agressividade e remir minha culpa, meus olhos queimando talvez expliquem minha grosseria, atribuo então meu destempero à acidez que fluiu da cebola, não, não é o ardor da cebola a razão dessa impaciência, não são os olhos na dor, nem a assadeira ainda não polvilhada, nem o forno ainda frio com a chama apagada, essa fúria gratuita nasceu desses mesmos olhos agora ardendo em flamas, maldito dom da visão, a porta de entrada aos desejos, um convite ao pecado da cobiça, a ira então brotou do anseio, do desejo que penetrou por entres os olhos, justo então o castigo que a cebola deu a eles.

 Resta saber se essa água quente que espirra em mim é resultado do seu destrambelhamento, ou se é vingança em resposta a minha estupidez, suponho não ter sido tão rude a ponto de merecer um banho de água fervente, ao contrário da visão, o sentido do tato não teve participação no nascimento desse desejo, não merecia ser escaldado, venho então em defesa do paladar e do olfato, assim como o tato, paladar e olfato já são suficientemente castigados pelos anseios e pela vontade, pelo desconhecido prazer, a exclusiva experiência dos olhos e ouvidos inflama a gana do olfato ansioso pelo misterioso cheiro, incita a sede do paladar pelo secreto sabor e dá ao tato a temperatura ideal para sentir o desconhecido calor.

 Difícil será defender o dom da audição, tão culpado quanto o dom da visão, aquela agradável sonoridade captada pela audição produz um desejo pecaminoso de tom maior, creio que por isso a penitência aos meus ouvidos seja diária, a cada play dado na casa do vizinho surge o castigo ao meu ouvido pecador, todavia, benditas sejam elas, audição e visão, culpadas e privilegiadas, os dois únicos sentidos que têm acesso a esse desejo, afortunados por sentirem o deleite da contemplação.

 A exclusividade que esse prazer dá aos olhos e ouvidos está criando uma desfunção nos cinco sentidos, tal desequilíbrio está afetando meu sistema sensorial, olfato, paladar e tato estão insatisfeitos, estão se rebelando contra o corpo, o dom de enxergar e ouvir estão saciados enquanto os demais sentidos padecem diante dessa vontade.






sábado, 4 de março de 2017

Quarta-feira



Maldita ressaca! De tão grande que é esse mal estar matinal, essa fumaça na minha cara logo pela manhã pouco incomoda.

Passe pra lá com esse cigarro verde e me traga aquela água bem gelada que nos batiza e nos liberta nas manhãs de carnaval, muito se fala nas tristezas que duram por longas noites, mas nunca ouvi dizer sobre as angústias que surgem pela manhã, essa trágica quarta-feira que nos traz de volta ao mundo real só não é mais fatal, pois Mário Sérgio já nos avisou que o mundo não é de uma só manhã, então deixa correr, deixa passar, deixa rolar, de qualquer forma esse despertar é de fato cruel, ele nos revela que todo carnaval tem seu fim, que o sonho bom que ficou pra traz pode não mais se repetir, bem que me avisaram dos riscos de mexer com o sagrado, pior é mexer com o profano, pior ainda é mexer com os dois simultaneamente, resta agora colher as consequências desse atrevimento.

A mente ainda inflamada estimula o despertar, vou então ver se há algum feitiço capaz de dar fim a essa alucinação póstuma, curar essa perturbação dará novo fôlego, me dará astúcia para esta quarta-feira nunca mais em mim chegar.


quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Torre de Babel




 Para erguer uma torre até o mais alto céu, não é preciso dominar a língua do homem nem a língua dos anciões, não é preciso compreender a língua dos deuses, para erguer uma torre que arranha o firmamento não basta dominar as leis da física, não basta compreender cálculos quânticos, para erguer uma torre até os céus é preciso a ginga do pedreiro que mexe a massa, dos moleques que suspendem as latas, é preciso harmonia na interação coletiva, é preciso sintonia entre as partes, tal sintonia, tal harmonia, a engenharia humana é incapaz de explicar.

 A tentativa fracassada dos nossos antepassados em erguer uma torre que transcende as nuvens se deu pela incapacidade de compreensão, a diversidade de idiomas foi o grande problema, naquele instante, muitos eram os idiomas falados, todas as línguas do mundo ali estavam, exceto a linguagem dos olhos, exceto a língua universal da compreensão, a língua do feeling, a língua da boa vontade não era falada em meio aquela confusão, com isso o fracasso foi inevitável, a torre veio a baixo, ruiu e soterrou a petulância daqueles que buscavam ascender aos céus.

 No topo dessa torre jamais construída está a resposta para os mistérios da vida, pois em cima dela está o resultado da união, está a unidade construída pelo poder da interação coletiva, os construtores dessa torre não falam a mesma língua, não dispõem das mesmas habilidades e força, todavia, possuem o poder da compreensão, sendo assim possível somar forças para tamanha ambição, no topo dessa torre  jamais construída está a resposta para o amor a primeira vista, pois ele não necessitou de palavras pra acontecer, está o amor incondicional, pois ele não precisou de condições pra existir, nela está toda espirituosidade que faltou para os antepassados que fracassaram sob o senso comum, incapazes de se adequarem em meio a incompreensão. 

 De cima dessa torre que jamais existiu é possível assistir ao eclipse dos anjos, onde a luz angelical que emana dos céus ofusca todas a formas de luz que vão para terra, uma luz tão forte capaz de ocultar de nós toda a verdade que está além das portas do céu.

 Talvez sejamos incapazes de construir algo tão grandioso, talvez os deuses temam nossa aproximação, talvez Eles temam que essa torre nos leve a tão procurada compreensão.   

 Enquanto isso, enquanto projetamos os fundamentos dessa torre, você aí que é diferente de mim não me tema, você aí que é diferente dele não o exclua, você aí atrás que se julga diferente de todos não se sobreponha, você aí que supõe que todos são iguais não seja tolo, você aí que sabe que é diferente de todos não se diminua, ora pois, antes que essa exortação me leve ao apedrejamento, não irei propor aqui um brinde a diferença, pois ela é a razão de todos os males, muito menos um brinde ao senso comum, pois ele é a certeza dos grandes males.

 Seja na diferença ou na unidade, para que surja a torre da ascensão, só peço uma coisa, só peço compreensão.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Arca do neo



 A arca do novo mundo está sob o comando do grande Ministro, aquele que guiará os remanescentes a um novo ciclo pós apocalíptico, o grande Ministro que detém o leme da embarcação é chamado de lorde junto aos mais nobres, pelos mais íntimos conhecido por capitão, os ímpios o proclamam almirante, pelos gentis chamado de Mediador, pelas crianças notado como barqueiro. 

 Tamanho é o fardo desse grande líder, selecionar os remanescentes para continuar a vida em um novo continente, uma tarefa ingrata e doída, levá-los a um continente que brotou milagrosamente do mais profundo oceano, uma terra nova de águas cristalinas a sua borda, hábeis pescadores portanto, serão necessários a bordo da arca para garantir os frutos desse vivo mar, há a expectativa de gigantescas árvores que invadem as nuvens, assim, pés ligeiros e mãos elásticas serão essenciais para apanhar frutos dos altos galhos, uma terra fértil não ao ponto de emanar leite, mas não seria surpresa se dela germinasse mel, um território próspero e dinâmico que precisará de bons líderes para garantir sua sustentação e prosperidade, não basta então o bom barqueiro selecionar hábeis mãos, braços fortes, mente inventiva e primorosa, será necessário transcender o primor e encontrar pensamento agudo, mente sensível, perceptiva, a composição do novo mundo precisará de entendimento em meio as ambiguidades.

 Uma busca difícil por exigir novos conceitos e concepções inéditas, terá então esse mediador que meditar sob o escopo do improvável, terá que se despir de vaidades, de convicções e padrões pré estabelecidos, essa lavagem interna eliminará valores e preceitos contaminados pelo velho mundo, mundo que ficará pra trás deixando algumas boas saudades, mundo que deu errado em meio a tantas certezas.

 Pobre barqueiro, talvez não sobreviva durante o longo percurso rumo ao novo mundo, a tempestade externa pode sim naufragar a arca antes que ela chegue a seu destino, embora uma tempestade interna seja mais provável, diria até que mais destrutiva que os fenômenos da natureza. O grande Ministro padece ao mediar as tantas facetas que enfim embarcaram, o dilema das diferenças que se confrontarão na fundação do novo mundo já dá um aperitivo a bordo da arca que finalmente partiu, um recomeço que inicia turbulento, o excesso de contingente obriga a arca a partir condenando os que ficaram para trás.

 Aliviados e inconformados já ensaiam conspirações em oposição ao grande Mediador, a ala do norte indigna-se pelo excesso de idosos, a ala do sul pelo excesso de crianças, a seleção diversificada do capitão indignou a ala do centro, centristas presos a velha conduta almejavam por uma arca monocromática, com a menor diferença possível, a ala dá direita se opunha ao Lorde por discordarem do alto número de passageiros, julgavam desnecessário a quantidade de incompetentes que ali estavam, já os componentes da ala da esquerda planejam a derrocada do almirante por estarem insatisfeitos com a baixa lotação da embarcação, alegam a má distribuição do espaço na barca, espaço este que comportaria um maior número de tripulantes, diminuiria então o número dos deixados para trás.

 O Mediador segue sua viagem com destino ao novo mundo, resta saber se ele sobreviverá, se resistirá a força das diferenças, se viverá pra ver a tentativa de um recomeço.

 Mesmo em meio ao conluio, o grande Ministro sabe que esse reinício não tem espaço para a utopia e nem tampouco para a supressão militar, ele então inventa alternativas, improvisa ao liderar, se mistura aos privilegiados que ganharam uma segunda chance de recomeçar.

 A subsistência está lançada à sorte, a arca chegará a seu destino após essa longa jornada?  

 Quem vai saber?

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Ciranda


   O som estridente da chapa ardente, os estalos do fritar das tiras de bacon e a fatia de queijo borbulhando por sobre o hambúrguer somados com o aroma dos anéis de cebola sobre a chapa defumada, penetraram nos olhos, ouvidos e nariz do gordo loiro sentado no balcão da tradicional choperia de esquina, o gordinho assistia o espetáculo da espátula, uma afiada espátula manuseada por mãos ligeiras, seus olhos acompanhavam cada movimento, seus ouvidos identificavam o detalhe de cada ruído proveniente daquele palco repleto de gostosuras e sua boca  produzia uma enorme quantidade de saliva que escorria pelo seu queixo, a baba que fluía pelos cantos da boca do gordo apontava a profundidade da hipnose na qual esse faminto rapaz estava submerso. 

 Logo adiante no saloon à frente, havia outra vítima, ou melhor, outras vítimas, vítimas da hipnose do desejo, nesse outro cenário paralelo, o objeto de cobiça possuía qualidades mais estimulantes do que os ingredientes necessários paro o preparo de um cheeseeburguer, de modo que a excitação causada por um cheeseeburguer atende apenas o deleite do saborear, o prazer de degustar, já a excitação causada por esse outro agente hipnótico atende diversas formas de prazer, novamente então, olhos, ouvidos e nariz foram os receptores e porta de entrada para a ilusão transmitida por aquele conjunto tentador, a composição desse cenário de tentações se manifestava através do cardápio repleto de iguarias, dos barris carregados de chope, da agradável balbúrdia composta por beberrões que estilhaçavam copos após beberem à saúde do bom companheirismo, entretanto, foram as dezenas de moedas que entupiram a juke box que deram início a agitação naquele extinto saloon, os intermináveis bolerões estilizados de Odair José e Johnny Rivers selecionados por uma única mão garantiram o molejo do presente mulheril, as míticas canções de amor e ódio flutuavam por aquele salão esfumaçado e se misturavam à fragrâncias fortemente adocicadas, essa fusão perturbadora invocou ao ambiente uma altiva morena de cabelos longos, tal presença coloriu aquele escuro ambiente monocromático, o desenho da cintura daquela notável mulher foram pincelados delicadamente, sua presença voluptuosa entorpecia quem a olhasse, esse poder entorpecente corroeu a mente de uma presente tríade de charlatões, paralisados e privados da razão, tamanha foi a devoção desses três indivíduos movidos pela malemolência da linda morena.

 Estavam esses três cavalheiros localizados em distintos pólos desse salão de arquitetura triangular, a bela morena ironicamente centralizada estava ao alcance dos três, ela reinava de modo soberano, não havia ali concorrente que ousasse competir com tamanha volúpia, por outro lado, não demorou para que os três sacanas vítimas da sinuosidade da presente mulher de cabelos negros percebessem que para ter a exclusiva atenção da doce morena, teriam que primeiramente vencer a concorrência, teriam que inicialmente derrotar dois adversários em potencial para enfim se achegar  ao grande prêmio.

 Enquanto os três cães apaixonados se observavam e se estudavam meticulosamente, o feliz gordo do outro lado da rua era agraciado com aquele saboroso cheeseeburguer, diferente dos três homens que duelavam pelos lábios da morena, este rapaz já tinha em mãos um suculento lanche no qual se lambuzava de prazer.

 Os ponteiros do relógio seguiam em ritmo lento, ela alheia a tudo e a todos continuava a dançar, o gordo feliz continuava a mascar, já os três canalhas seguiam estáticos, seguiam silenciados pela dança e pela tensão.

 A tensão no ar bagunçou com o sistema nervoso dos três peões, tal inquietude fez o primeiro peão agir, este primeiro percebeu uma bainha de couro anexa ao cinturão do segundo e um volume suspeito por debaixo da camisa do terceiro, ele deduziu então que se tratava de uma faca e de um revólver, por estar desarmado ele quebrou uma garrafa de conhaque ao batê-la contra parede e passou a manuseá-la de modo ostensivo exibindo as lâminas na ponta da garrafa quebrada.  

 O segundo peão entendeu o gesto do primeiro e desembainhou sua faca e a cravou na parede, demonstrando deste modo toda sua força ao vencer a rígida parede de madeira com a ponta afiada de seu punhal.

 O terceiro assimilou o recado de ambos e por dispor da arma mais letal, apenas se espreguiçou lentamente pra melhor exibir seu revolver sob a camisa.

 No calor das exibições, o primeiro percebeu que estava em desvantagem em relação a seus adversários, preferiu então desistir do duelo, retirou-se do bar facilitando assim o caminho dos outros dois.

 O terceiro sabia que se sacasse seu 38 espantaria os presentes no bar, o alvoroço afastaria inclusive a cobiçada morena, diante disso, resolveu se retirar do bar pra evitar o confronto, optou por esperá-la e surpreendê-la na saída.

 Com o caminho finalmente livre, o segundo não hesitou em se lançar até à morena pra enfim desvendar seus mistérios, o uso da faca não mais seria necessário, bastaria apenas o fel destilado corretamente para quem sabe assim conquistar a atenção da moça.

 A sorte no entanto, virou-se contra o segundo peão, antes mesmo que ele se achegasse à morena, ela subitamente interrompeu a dança e dirigiu-se à saída do bar, o pobre rapaz não pôde usufruir da vantagem que se apresentou, coube a ele portanto seguir a moça até a saída, estava ele  ciente de que encontraria novamente do lado de fora aqueles dois adversários com os quais ele disputava a afeição da admirável fêmea, ele sabia que isso resultaria no reinício da disputa travada entre eles.

 Ela já do lado de fora iluminada pela luz da lua se revelou criminosamente linda, a baixa iluminação do salão impedia a precisa visualização dos atributos estéticos da morena, o magnetismo derivado de tais atributos era mais letal que as munições de um 38, mais afiado que um punhal de dois gumes e mais cortante do que qualquer lâmina improvisada, o poder bélico dessa morena veio à tona enquanto ela banhava-se do refrescante vento serrano, envolta pelo ar refrigerante que movia-se em torno de si, a morena protagonizava um belo espetáculo da natureza.

 O primeiro sacana que renunciou à disputa pela morena, expurgava sua dor no balcão da choperia sentado ao lado do lambuzado gordinho, a cada mordida do gordinho um gole da parte do peão, no ato do último gole dedicado à doce morena o peão avistou no outro lado da rua através da janela os lindos cabelos dessa morena cadenciados pelas rajadas de vento, foi quando ele se deu conta de sua inconsciente renúncia, boquiaberto e com a cerveja escorrendo da caneca ao tórax, ele percebeu que achegar-se àquela bela mulher implicaria no início de sua desgraça.

 O terceiro malandro posicionado exatamente ao lado da bela morena sentiu na pele a força daquela presença perturbadora, extasiado com tamanha graça, este peão tremia internamente à beira de um colapso, tal perturbação lhe fez compreender que não suportaria tamanho deleite.

 O segundo rapaz poucos metros atrás, não só testemunhou o grandioso espetáculo protagonizado pela linda morena, como também viu seus rivais derrotados pela manifestação grandiosa da moça cuja qual lhes fez rivalizarem, ele pôde enxergar o primeiro sacana de boca aberta no balcão do outro lado da rua e o terceiro posicionado a poucos centímetros da morena em estado de choque, não alheio a tamanho encanto, ele de modo mais lúcido também sabia do perigo que seria amar aquela mulher, com isso, seguiu o exemplo de seus adversários e ficou ali parado apenas contemplando a existência daquela morena regente do tempo e espaço.

 A alegórica ciranda composta por esses três malandros estáticos e pela sutil dança no vento interpretada pela cobiçada morena teve seu fim quando os ventos se acalmaram, os ventos se acalmaram e tudo se acalmou, tudo voltou a ser como era. 

terça-feira, 12 de abril de 2016

Amares.

                            

Sinta-se a vontade, a casa é modesta mas tem seus encantos, sente-se, sinta-se em casa. Veja só, nunca percebi aquele piano ali, por muitas madrugadas venho aqui e não percebo quase nada, nunca me assento naquele canto longe da janela e nem nunca saboreei os brócolis empanados ou as cachaças curtidas nas carquejas.

Façamos diferente nesta noite; Esquimó, esta aqui é a Lucy, tire os olhos dela, sente a frente daquele piano, o faça sangrar e nos faça sangrar!

Muito melhor agora! Note você doce Lucy que o dedilhar ligeiro do virtuosíssimo Esquimó e seu teclar percussivo lança pra fora do piano e pra dentro do ambiente os anos oitenta, o estalar das bolas de bilhar de marfim convergem com o animado ritmo extraído desse piano escondido, até essa inconveniente mesa de sinuca finalmente se encaixa.

Agora quero ver quantos tantos vão ficar aqui parados, garçons acelerados, corações também, observe nos olhos da Leca, dá pra ver a saudade sentida, esse olhar sempre surge quando o torpe Vega se faz ausente; perceba que em meio ao súbito despertar do ambiente, a repentina alegria que recaiu sobre um lugar apagado despertou o que há de pior em todos aqui presentes.

De cá da pra observar o bater dos pés da Clarice, moça cheia de pompa, sempre calada, apenas bate o pé dentro do balanço, jovem negra espirituosa, pomposa, estava mais pra uma idosa.


Olha como o Ralf brilha com a testa amanteigada, é muito gel fundido com suor escorrido dos seus cabelos de Elvis, Elvis também no balançar, ele quebra os joelhos como ninguém, a atenção demasiada que ele traz pra si é também o que o apaga.

O Alverique talvez seja o único que não foi pego pela trilha do Esquimó, neste ambiente capturado pelo som, Alverique é o único que não foi apanhado pelo bom tom, desiludido com a desigualdade social ele suspeita que os illuminates estão aqui no nosso meio planejando um novo golpe, sua paranóia lhe tirou a paz, em cada canto que vai ele supõe haver algum membro infiltrado de alguma sociedade secreta, há quem diga que Alverique sempre foi doido, mas nesta noite talvez ele enlouqueça de amor, pois até mesmo ele pode ser pego por esse estranho clima no ar.

Eu aqui não sei dizer o que acontece com o Raimundo, o safado nunca se ligou em música, sempre disse a ele que a patifaria por ele praticada era poema em muitos clássicos da música popular, sua vida é cantada em muitos clássicos da world music, o molejo dele naquela roda de morenas  me faz crer que ele finalmente entendeu isso.


Mesmo embriagado pela música, posso dizer que a performance do Esquimó não provém de sua virtuosidade enquanto instrumentista, tanto carisma ali interpretado é fruto de algo mais forte, suspeito que seja em tributo ao seu bebê recém nascido, inspiração nascida da fraternidade, fraternidade incondicional incapaz de reconhecer o bem e o mal, mas que representa muito bem o que é o amor.

Agora já dá pra ver, o ambiente alegre diminuiu a melancolia da Leca, ela enfim está feliz, está feliz e por isso infeliz, queria felicidade ao lado de Vega, resta só a saudade, toda dor por ela sentida e por ele causada não diminui a saudade, essa infelicidade mesmo em meio a felicidade é também o que chamam de amor.

Repare na rústica e bela Clarice, menina velha, a sonoridade de agora por ela sentida diminuiu sua cara amarrada, se essa amargura for tão boa quanto o amargor do chocolate, do café ou das cervejas tipo extra pilsen, o rapaz pelo qual ou a moça pela qual ela bate os pés em ritmo violento, gozará de bom grado quando ela enfim lhe dar a sua peculiar forma de  amar.


O fulgor e a energia do Ralf me impressiona, quanto mais ele dança menos ele se cansa, estão todos cansados desse excesso de exibicionismo, saiba porém, quando ele parar com a exibição, sempre haverá quem peça bis, seria como uma das tantas metáforas do amor que diz que a beleza só é percebida quando ela se vai.

Parece que a música deu sorte ao Alverique, ele parece apaixonado por essa moça que estranhamente se aproximou dele, só espero que ela não seja da maçonaria, mas caso seja seria uma união interessante, afinal a história mostra que o amor só funciona de modo estranho, assim, o amor entre esses dois doidos certamente daria certo.


O bom Raimundo é o que melhor se encaixa nesse clima aqui, safadezas e picaretagens a parte, mesmo diante da verdade o amor não depende dela pra existir, a verdade não é garantia de amor. Raimundo mente ao coração delas e olha só como elas sorriem, quantas delas será que ele ama? Por quantas delas ele morreria?

Me diga então menina se amor é justiça? Amar é injusto?

Este estabelecimento sem graça hoje cheio de graça, graças ao bom Esquimó e também a sua graciosidade doce Lucy, é a comprovação prática de que mais difícil do que definir o que é a vida é dizer ainda que de modo simples o que é o amor.

Saúde!!!

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Vergonha



Wolf enfim se depara com o absoluto nada, ele desperta nessa imensidão silenciosa e pensa ter morrido, pensa então o quão nociva é a credulidade, lembra de quando era criança quando seu tio lhe dizia que os lobos uivantes das montanhas viriam lhe buscar,  do terror que sentia  ao ouvir seu tio lhe educando através do medo, Howling Wolf caminha em meio a esse imenso nada,  frustrado e envergonhado, mais envergonhado do que frustrado, de qualquer forma pouco importa o tamanho dessa vergonha, afinal, morreu o grande Howling Wolf.

 Morto e envergonhado, vergonha de ter sentido o que sentiu, de todo o prazer que de nada valeu, frustrado não mais, as emoções, amores mal vividos, decepções que teve em vida não lhe incomodavam mais, tudo isso já não importava, a vergonha por outro lado insistia em ficar, a vergonha mesmo após a morte lhe acompanhava, pior do que a tristeza de uma vida vã, era a vergonha de viver um engano, de viver o engano, engano este que lhe indicou um caminho vão, ideologias e objetivos vazios.

 Maldita credulidade! Wolf creu naquilo que não podia ver, viveu então uma vida baseada na espera, na expectativa de uma recompensa, moldou e sufocou suas aptidões e desejos por algo incerto, esqueceu do presente por temer o futuro, Wolf contudo, teve uma vida afortunada, difusa, repleta de deleites, entretanto, a bendita crença impediu a progressão desses prazeres, essa esperança pelo desconhecido não chegou a interromper os deleites da vida de Howling Wolf, mas afetou o bom aproveitamento de sua  vida fugaz.

 Ainda caminhando em confronto com a vergonha finalmente as comportas surgem diante de Wolf, elas se abrem sem terror ou esplendor algum, Wolf adentra às convidativas portas e procura por calçadas de ouro, por anjos cantando Hosana nas alturas, por não dispor de uma alma santa, procurou também pelos círculos do inferno, por ser lascivo procurou pelas virgens do islã, ele muito procurava mas nada encontrava, surge então um novo portão, Wolf o abre, abre esse alegórico portão e desperta, já acordado e aliviado, ofegante, Wolf calça seus  sapatos, levanta da cama, levanta da morte e vai viver,

quinta-feira, 5 de março de 2015

Imortal



Se o bicho pega agente solta o bicho e rema contra a maré”, foi essa filosofia que deu fim a preciosa vida do kengo mais elegante do Mississipi, os muitos anos que correram não foram suficientes para mitigar os erros desse fino kengo, tampouco sua morte gloriosa pôde lenir seus tantos pecados.

  Boas justificativas não faltariam pra explicar a omissão desse torpe homem sob a crítica situação que se apresentou diante de seus olhos, o alto nível de embriaguez bem como sua condição sexagenária não lhe capacitavam pra desempenhar um papel heróico conforme exigido pelo presente momento, de modo que nos primeiros instantes, nos segundos iniciais da iminente tragédia, ele optou por apenas assistir o drama corrente no coração do rio Mississipi vivido por uma jovem moça, no entanto, movido por um forte instinto ele transformou-se e agiu em favor da moça que se afogava no rio, esse súbito acontecimento interrompeu a introspectiva pesca desse homem, o anzol no fundo do rio e ele mergulhado em um tempestuoso e emblemático passado, parado e preso à lembranças picantes cheias de marcas, passado glorioso, onde ocupava a posição de um verdadeiro cavalheiro em meio a nata britânica, passado tenebroso, onde ocupava a posição de presidiário e reles vigarista, viveu a experimentar os manjares do céu tanto como mendigou sob os destroços do inferno, rememorava também acerca das perversões e antigas paixões, as mãos calejadas e a boca desdentada simbolizavam o fracasso e o sucesso pelos quais passeou, já não havia portanto moralismo que pudesse impedi-lo ou vaidade que pudesse inibi-lo, já não sabia mais distinguir amor de ódio, estava portanto aquela moça que se afogava condenada à morte, esse nobre e pobre velho não dispunha de qualidades que o motivassem a salvar a jovem moça, consciente de sua frágil condição, o velho senhor também sabia que aquela mulher que era sugada pelas águas tinha poucas chances de sobreviver, ao assistir o desespero da moça sobre  a fronteira da vida e da morte ele atirou-se na água e partiu em direção à moça a fortes braçadas, esse seria mais um erro pra sua grande coleção, ele estava ciente de que morreria.

  O Shinigami, contudo, do outro lado da margem intrigou-se com a intromissão do bom velho, nem mesmo o Deus da morte pôde prever tal intervenção, o afogamento da jovem moça que viria a ser apenas mais uma morte tediosa, despertou a atenção do Shinigami, de modo que Ele assentou-se à beira do rio e acomodou-se pra melhor apreciar o interessante embate pela vida protagonizado pela moça e o velho, o fulgor do heroico idoso contrastava com o abatido semblante do Deus da morte, o Shinigami há milhares e milhares de anos perdera a excitação pela existência, entretanto, o curioso episódio onde o frustrado senhor lutava pela vida da jovem moça, reascendeu uma pequena fagulha de ânimo no coração do Shinigami, há muito Ele não testemunhara um drama tão emblemático, Ele portanto, apreciou cada segundo, cada detalhe desse raro momento.

 Ao ver o ofegante velho caído de braços abertos à margem do rio Mississipi e ao seu lado a jovem moça sã, salva e de joelhos clamando aos céus pela vida do velho kengo, o Shinigami considerou que a troca feita pelo velho viril fosse conveniente, ele permitiu tal troca em troca da agradável distração que o presente casal lhe proporcionou, permitiu assim por mero capricho que a jovem moça continuasse a viver, Ele ouviu as batidas finais do sexagenário e cansado coração e partiu sem destino com destino ao tédio, partiu ao som do doloroso e choroso pesar da afortunada moça debruçada sobre o falecido corpo vencido.

 Partiu e se pôs a pensar na tediosa eternidade na qual está inserido, o raro momento que ele testemunhou há poucos minutos reavivou em sua memória lembranças picantes, lembranças de raros instantes de excitação, quando como se mantinha preso nos quilombos a observar o conluio de escravos negros em oposição aos senhores de engenho, fascinava-se pelo gingado das negas e dos negos durante a falsa dança que levantava poeira, e durante as rebeliões empolgava-se ao ver fortes pesadas e fortes lapadas fazerem o seu trabalho de dar fim à vida alheia, a imponente covardia garantida pela pólvora em duelo com a quente ousadia garantida pela energia física jamais o motivou a intervir em tais duelos, as raras intervenções por parte do Shinigami aconteciam nos momentos de eloquência, quando a nega ou o nego diziam palavras cortantes em bom tom, quando falavam lentamente numa sutil melodia que ofendia a formalidade de seus senhores, em alguns desses momentos o Shinigami enguiçava o gatilho, bem como enguiçava a batida cardíaca dos malditos senhores.

  Em 1822 no dia 7 de setembro, o grito da independência desviou a bala que estava reservada ao peito de Dom Pedro, a invisível lâmina do Shinigami partiu a munição ao meio, é sabido que não compete ao deus da morte emancipar nem libertar, mas a outra opção que seria a morte Ele desempenhou muito bem, ceifou centenas de vidas com a mesma lâmina que prolongou a vida do imperador lusitano, a desagradável pronuncia portuguesa é terrível até mesmo para o treinado ouvido milenar do Shinigami, contudo, foi o conteúdo inserido nessas palavras mal pronunciadas que estimulou o Shinigami a favorecer a alforria brasileira.

 De fato a eloquência seduzia o irredutível Deus da morte, a bordo de aviões Kamikazes, em um dia de muito trabalho quando foi passageiro de centenas de aviões em um dia bastante instigante, a cada grito de guerra suicida, diferentes eram as sensações causadas no Shinigami, Ele apreciava os dizeres finais na hora da morte, a maioria deles cheio de graça, pequena parte deles comovente, mas todos com um retumbante brado, carregado de convicção e força estrondosa, eis então que alguns desses dizeres fizeram o Shinigami pressionar o botão ejetor.

 Não havia um critério a ser seguido para que o deus da morte empunhasse sua foice, vidas eram ceifadas sem motivo aparente, não existia um motivo para promover a mortandade, não era uma tarefa que ele gostava nem que não gostava, sua função natural era natural, a realidade em torno do ceifador pouco lhe estimulava, Ele dispunha de um temperamento oposto ao anseio humano, ao passo que, para os humanos tudo é festa, os anos de vida diminuem e contraditoriamente incitam a comemoração, como se os humanos soubessem o quão torturante é a eternidade e comemorassem a proximidade da morte.

  A eternidade portanto, se tornou a grande inimiga do Deus da morte, porém essa crise existencial por parte do Shinigami nem sempre existiu, por muito Ele se deleitou com o ímpeto humano ao longo dos séculos, Ele apreciava a configuração da sociedade viking, civilização bárbara de crueldade refinada, o contraste da brutalidade harmonizando com a ordem despertava a atenção do Shinigami, Ele intrigava-se com a supervalorização que era dada a matança, com a premiação a algo tão banal, quando como as forças armadas foram recompensadas e triunfaram publicamente ao exibirem a cabeça de Lampião e seu famoso bando de cangaceiros que aterrorizavam o nordeste brasileiro, fascínio maior o Ceifador tinha pelos mártires, mártires que se compraziam em renunciar a própria vida por uma luta vã, pelos mártires passionais que eram fisgados pelo misterioso poder da paixão, eventos dessa natureza funcionavam como se estivessem sobre um palco de entretenimentos, onde o Ceifador enquanto expectador se deleitava diante de um agradável espetáculo.


 A paixão de fato era o sintoma humano que mais ascendia o Ceifador, sua milenar experiência jamais permitiu que Ele compreendesse o fulgor dessa paixão, era demasiado confuso ao Deus da morte testemunhar a "caça às bruxas", mulheres levadas à fogueira e incendiadas sob o pretexto de rebelião religiosa e política, mulheres que eram incineradas sob o argumento de praticarem feitiçaria, por supostamente possuírem poderes malignos, quando na verdade era a incapacidade do homem, seja ele do clero, da plebe ou da alta corte, de justificar o tormento causado pelas minúcias de uma menina, nesse período o homem era incapaz de explicar essa força monstruosa, uma força altamente destrutiva que um simples suspiro feminino possui, ao longo dos anos o homem aprendeu a decifrar essas minúcias, esses ditos encantos da mulher nos tempos atuais foram decifrados e assim compreendidos, entretanto, essa lucidez que o homem adquiriu no decorrer dos anos torna tudo mais confuso ao Shinigami, pois o poder de destruição da mulher se amplificou grandemente, nos dias de hoje o feitiço é muito maior,  o sorriso é mais sutil, possui o gracejo do oriente, sorriso cortante feito um machado empunhado por uma altiva guerreira nórdica, a malícia feminina que já era grande individualmente ganhou maior força ao se fundir à diferentes texturas, à diferentes raças, a pele vermelha do sul da América ganhou novo tom ao somar-se à leveza do mediterrâneo, nasce então o novo corpo feminino místico e misto, movido pelo fervoroso sangue hibrido que passou a correr nas veias da nova mulher, da mulher moderna não mais de sangue puro, mas poderosamente renovada pela mistura étnica, essa nova mulher segundo o refinado e experiente olhar do Ceifador é muito mais perturbadora do que a antiga mulher de sangue puro, hoje a nova mulher reúne em si uma diversidade de valores inexistes na pureza da mulher de épocas remotas, tal fato revela o engano do homem em acreditar que enfim decifrou as minúcias de uma mulher, grande engano, visto que nem mesmo o Deus da morte pôde compreender a força desse encanto.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Alvorecer


 Não critique o atendimento, sua postura abrupta garantirá mililitros de saliva em nossos copos, meu uísque servido na mesa está protegido, mas o peixe assado ainda está à mercê, contenha pois então seu ímpeto milorde e nos prive da mucosa alheia, todos vocês aqui assentados a essa mesa escarnecedora não se iludam com esse chafariz de mármore, não se deixem levar por esse forçado sotaque francês, ao preterirem o modesto estabelecimento da tia Lu, vocês se privaram do deleitoso leitão na brasa, renunciaram ao suculento feijão branco e aos temperados petiscos especialidade da casa, pessimismo meu aparte, não posso negar que a configuração dessa nobre casa nos dará melhores condições pra avaliarmos esse momento adverso. 

 A você Miss, peço um sorriso, nos acalme nem que por alguns segundos,  antes de começarmos sorria pra todos nós e diminua essa tensão que nos consome, Tungão te aviso desde já que o seu gracejo não será tolerado se manifeste apenas quando for acionado, quanto a você  varão, receio que agora sim seja uma boa hora pra você apelar pro seu deus de milagres, já você rapaz da arte pop, deve saber que nesse momento a criatividade será de grande valia, mostre que sua arte pode ser uma saída, já sob sua ótica velho homem sei que somos todos crianças, as estradas pelas quais o senhor percorreu lhe deram suficiente experiência para abrandar essa tormenta, todos aqui presentes, doutores e calouros, são todos essenciais, até mesmo você com esse alface nos dentes e com as mãos meladas, por mais asqueroso que tu sejas sua vitalidade será determinante na hora do confronto real, por fim, a você bom soldado vale dizer que és o membro mais hábil e competente desta organização, essa silenciosa exclamação e serenidade estampada em sua face é o que nos dá esperança, difícil é repetir essa sua serenidade diante desses crustáceos a passarinho, definitivamente essa crocante lagosta envolta por camarões não foi uma boa pedida, o barulhento mascar do nosso abominável amigo aqui está roubando a paz que não temos.

 De qualquer forma, tenhamos bom ânimo, esse é o pensamento do dia, testemunhamos hoje aqui o rigor e a intolerância do nosso nobre lorde, a espirituosidade do sempre bem humorado Tungão, a fé inabalável do bondoso e ingênuo varão, sentimos o potencial explosivo desse jovem artista, nos deparamos com as respeitáveis rugas desse clássico veterano de guerra, até as espumas expelidas por você abominável homem foram positivas, elas são a prova da sua energia e vigor físico, repito então, tenhamos bom ânimo, temos também em nosso favor a elegância e o intelecto do nosso talentoso soldado, basta unirmos o potencial particular de cada um de nós que em tempo venceremos essa adversidade, antes de dispensá-los, peço novamente a você doce Miss um breve sorriso, sorria e nos dispense a fim de encerarmos essa reunião noturna com a esperança de um novo amanhã.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Amor dos Deuses.



“Como raiz de uma terra seca; não tinha beleza nem formosura, e olhando nós para ele, não havia boa aparência nele para que o desejássemos”.

 No capitulo 53 do livro que leva seu nome o profeta Isaías diz sobre a ausência de beleza física em Jesus Cristo, fala da formosura que o redentor não possuía, isso surpreende os artistas que ilustravam as belas figuras do “Renascimento”, o Cristo representado em telas e nas telas de cinema goza de atributos estéticos admiráveis, dispõe de características atraentes, há portanto, a clara indiferença por parte dos ilustradores acerca da descrição feita pelo profeta que anunciou a chegada do salvador, desse ponto, imaginar uma figura divina desprovida de atrativos que encantam os olhos seria bastante embaraçoso, assim, fica possível justificar a versão dada pelos responsáveis em ilustrar a imagem de Cristo, uma versão em oposição a verdadeira face daquele que trouxe a salvação.

 O grande personagem do cristianismo vai no caminho inverso dos demais deuses das principais mitologias, Jesus conforme descrito em seu evangelho não possui uma deusa a quem dedicar seu infinito amor, mesmo encarnado na figura masculina, se trata de um deus sem gênero, fixo apenas em sua divindade neutra, a saga de Jesus contada por Marcos, Matheus, Lucas e João mostra um deus com a única missão de ensinar ao mundo valores altruístas, transmitir a mensagem do amor ao próximo, Cristo traz consigo a promessa de uma nova Jerusalém, com ruas e calçadas de ouro e anjos cantando hosana nas alturas. A saga de Jesus Cristo é basicamente isso, onde as ações calcadas no amor garantirão ao bom samaritano o eterno deleite na dourada Jerusalém.

 Não se pode ignorar que em toda boa história existe a necessidade de haver um antagonista, um vilão que se oponha ao mocinho, que se objete ao herói, mesmo Cristo sendo onipotente, sendo a maior personalidade de todos os tempos, o ser mais influente, o maior mito narrado pelo homem, mesmo ele não poderia deixar de ter um adversário, um vilão para apimentar sua caminhada na batalha contra o pecado do mundo, surge então Satanás, originalmente nomeado por Lúcifer, não poderia haver vilão mais apropriado para Jesus cristo, afinal, Lúcifer conhecido também como Belzebu era ninguém menos que o modelo de perfeição, repleto de sabedoria e de perfeita beleza, Satanás era a mais sábia criatura que Jeová inventou, o deus Jeová jamais criou um anjo ou outro ser com a inteligência dessa criatura, Deus diz que essa criação é "de perfeita beleza", aparte da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, esta criatura é hoje o ser mais elevado.  

 Antes e depois de Cristo Satanás foi quem sustentou o grande ibope no âmbito dramático da narrativa cristã, os contos relatados na bíblia sagrada tiveram infinitos personagens, histórias de amor e traição, milagres, fábulas, comédia, ação e tragédias, todavia, todas elas eram representadas por humanos atingidos pela glória do deus Jeová, estavam esses personagens inseridos em episódios fadados, episódios com um fim certo, seja ao sucesso ou ao fracasso o enredo dramático dos contos bíblicos dispunham de um desfecho e resultados pré-destinados, uma vez que a onisciência de Deus já havia determinado o fim da trama envolvendo seus servos humanos, seria como ler revistas de fofoca que anunciam o que vai acontecer nos episódios seguintes da novela, seria como ser vítima de spoilers e saber antecipadamente o desfecho de um bom filme antes mesmo de tê-lo assistido, tudo isso põe Satanás na condição do personagem do mal mais curioso e completo em comparação aos vilões de outras mitologias, pois mesmo já  derrotado, mesmo sendo um poderoso e habilidoso rival, Satanás de nada vale diante da glória de Deus, Satanás é conhecido como o mestre da sedução, o arquiteto do marabalismo político que conduz esse mundo corrupto a perdição, é considerado uma entidade milenar de astúcia inigualável, é mencionado diariamente como aquele que irá tragar a alma daqueles que cederem a tentação, falar da missão de Satanás enquanto vilão nos obriga a admitir que ele de fato é um grande sedutor, afinal, ele conseguiu convencer o onipotente Jeová a assistir e permitir suas ações malignas que levarão parte de seus amados filhos para o fogo e tormento eterno, mas não podemos subestimar o criador do céu e da terra, talvez antes da consolidação dos tempos ele mude esse plano criado através dos séculos, pois nem homens e nem o Diabo podem alterar esse final glorioso cheio de amor e dor.

 Aparte todas essas circunstâncias que resumem a trama dos contos bíblicos, não pude deixar de ignorar que diferente da narrativa cristã, os grandes imbróglios que alimentam os enlaces e desenlaces embutidos nos enredos das principais mitologias não estão focalizados no irredutível ego do principal deus, a grande graça que dá ritmo aos contos das mitologias grega, egípcia, asiática, nórdica, amazônica e outras não mencionadas aqui, é a contextura criada pela diversidade de deuses, pois elas não se limitam em uma única ordem absoluta, a divindade existente nos demais folclores politeístas permite ao leitor se debruçar num universo dramático mais difuso, a inserção do leitor na fantasia se torna mais abrangente em razão da pluralidade do caráter divino, uma vez que os anseios e vontades dos personagens não estão centralizados em uma única entidade absoluta.

 A famosa Maria Madalena protagoniza polêmicas junto ao clero, a mais célebre prostituta do novo testamento talvez seja a personagem que mais tenha despertado interesse nos estudiosos em razão de sua suposta  tentativa de seduzir Jesus, enquanto teólogos especulam esse provável envolvimento, Freya a deusa da fertilidade e da beleza derrama suas lágrimas à espera de seu grande amor o deus Odur, aquele que anda pelos céus, a bela Freya líder das Valquírias, das guerreiras do território de Asgard é conhecida como a deusa da luxúria, tais qualidades despertaram o desejo em Loki o deus do fogo, mas esse amor não foi permitido por Odin, já nos contos gregos, amores proibidos transcorriam de modo diferente, veja o  caso de Perséfone a deusa da primavera que posteriormente viria a ser também a deusa do submundo, Perséfone a filha de Zeus a mais bela deusa do Olimpo negava seu amor a todos que lhes desejavam, Hades o deus do submundo também foi uma das vítimas do poderoso charme de Perséfone, Hades contudo, tomou o amor da jovem deusa a força, raptou Perséfone e a levou para o submundo tornando-a conhecedora tanto da luz quanto das sombras, tornando-a senhora das magias ocultas.

 Nas paredes das ruínas do Egito foi registrado que o amor do deus Osíris e da deusa Isis foi mais forte do que as leis da vida, Osíris foi traído pela ambição de seu irmão e perdeu a vida após uma cilada mortal, Isis reuniu os restos mortais de Osíris e o reconstitui, através da força desse amor divino Isis deu a Osíris novo fôlego e assim ambos viveram um amor póstumo e conceberam um filho, já nos contos japoneses, o amor entre Izanami e Izanagi  deram frutos maiores, mais do que um filho esse amor deu origem a vida humana, os deuses primordiais elegeram a jovem deusa Izanami e o jovem deus Izanagi para criarem o “céu e a terra”, a forte paixão que havia na relação de Izanagi e Izanami os inspirou a criar todas as formas de vida na terra.

 Dentre os mitos e lendas registrados ao longo dos séculos pouco se fala sobre a mitologia Amazônica, milhares de obras de ficção foram inspiradas por esses contos mitológicos citados à cima, entretanto, o espaço reservado ao folclore amazônico é insignificante em relação as mitologias mais famosas. Tupã o criador do universo, o deus do trovão, o deus que habita no sol, goza de uma imponência superior a de Zeus, criou o bem e o mal assim como Jeová, porém não há interesse por parte dos autores de ficção em realizar obras a partir das lendas que falam acerca da glória de Tupã, de certo modo é compreensível, pois as características de Tupã muito se assemelham aos adjetivos dos deuses de outros povos.

 Seria válido portanto, realizar uma fusão desses contos, levar Tupã à Asgard para se embriagar com barris de cerveja, convidar Odin ao Olimpo para apreciar as medéias em seus dolorosos cantares, mostrar a Hades a escuridão existente nos subterrâneos das pirâmides do Egito, levar Zeus ao sol e mostrar-lhe o tropicalismo, mostrar a Izanagi os encantos de Valhalla.

 Essa mistura daria origem a novas divindades, tanto Freya, Isis, Izanami, Perséfone mostrariam novos encantos aos novos deuses, mas o maior problema passional seria causado pela deusa Aracy, a deusa lua, aquela que governa a noite e as estrelas, se Hades a raptasse e a levasse ao submundo ela o iluminaria com sua tênue luz lunar, se Izanagi a convidasse para criar novas ilhas ou um novo mundo ela lhe mostraria as belezas da América, Osíris certamente agradeceria a Isis por lhe dar uma nova vida, permitindo assim que ele contemplasse tamanha beleza, se Zeus clamasse por um conto ela recitaria maravilhas homéricas jamais ouvidas, se Odin a convidasse para beber em Valhalla ela brindaria em nome da terra e causaria encanto aos assentados à mesa, Thor e Loki sentiriam-se crianças diante da celebração da bela Aracy, tais situações foram imaginadas por Tupã, por isso ele se omite e se esconde diante dessa guerra de vaidades travada pelos deuses, ele é o grande privilegiado pelo amor da mais belas dentre as deusas, Tupã bem sabe que se o esplendor da bela Aracy vier a tona, até mesmo Jeová e Satanás entrarão nessa briga para conquistá-la.

 Todos Eles são pegos pelo movimento da lua, mas apenas Tupã sabe o que tem por traz do mais belo astro que ilumina o universo. Tupã sabe que diferente dele mesmo e de todos os deuses existentes, Aracy é a única entidade que de fato sabe o que é amar, dela não emana ódio e nem justiça, não emana vaidade,  ela não clama por adoração.

Glórias à Aracy a verdadeira deusa do amor!

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Sorria


Ela sorriu, que decepção, o sorriso nos tempos atuais é o maior gesto de crueldade por parte da humanidade, nem a mais cruel das hienas se atreveria a sorrir em tempos de tamanha violência, um carnívoro que sobrevive de carcaças sabe muito bem o que é a miséria, os restos deixados pelos predadores maiores é o que garante a sobrevivência das hienas, talvez isso justifique aquele sorriso sádico, aquele riso demoníaco sob o instinto do “rir para não chorar”, é de se supor então que a hiena seja o mais repugnante dos predadores, o predador que fica a espreita, se aproveitando do trabalho alheio, que se diverte com a tragédia a qual a natureza lhe submeteu, neste mundo tenebroso então, sorrir é o grande pecado, muitos não vivem a tragédia, nem todos são vítimas da violência, contudo, a violência aí está, chacinas em hospitais, violência contra a saúde,  assaltos em escadões, violência contra o indivíduo, mas tudo bem, faça como as hienas, sorria da tragédia, sorria da desgraça, sorria e admita a ignorância, a ideia de que quem canta os males espanta é totalmente equivocada, quem canta  os hipócritas encanta, é um erro cantar enquanto o mundo grita de dor, aquela linda bola na trave que não altera o placar, que leva a torcida ao delírio não é tão impressionante quanto o menino que vai pra fera vender suas laranjas, o gesto do menino que vai pra fera vender suas laranjas tem pouco valor em comparação aos negrinhos da Somália que jamais viram uma laranja, o menino que vai pra fera deveria se envergonhar de vender  laranjas,  com muito suor ele vende laranjas enquanto as crianças da Somália suam de fome, que vergonha menino, que vergonha!

A diversão pois então está proibida, proibido também está o prazer e por extensão o tesão, prazer de apreciar um suco gelado, de saborear um bom prato, tá tudo proibido, tá tudo errado, seria um grande egoísmo gozar enquanto a outra parte dos nossos irmãos humanos agonizam em miséria, parte do mundo em luto e a outra parte em festa, sendo assim, só uma saída nos resta, convocar o militantes de sofá, convocar os revolucionários de Facebook, aqueles que cobram dos eleitores consciência na hora de votar como se houvessem bons candidatos, eles são frutos da pseuda-intelectualidade, aqueles que bravejam por vaidade e não por buscarem a real mudança, afinal, quem de fato busca a solução não procede com amargura, age de bom coração, quem busca a mudança não se engrandece com a ignorância alheia, mas sim busca elucidar quem sofre de cegueira.

Esse seu maldito sorriso meu bem é decepcionante tanto quanto interessante, é uma ofensa aos politizados das redes sociais que atacam com empolgação vazia nosso corrupto e lindo país tropical, esses indignados proibiram o encontro com a alegria, eles agem amargamente e fazem como as hienas, proíbem o riso, mas riem sobre as carcaças, proíbem a alegria mas não hesitam em se aproveitar das sobras e da carniça, se divertem as escondidas, gritam gol, vibram com nocautes, mas são incapazes de dar o outro lado da face para um novo tapa, enquanto os ignorantes que sequer sabem o que é uma democracia praticam o altruísmo, os intelectuais de Facebook ostentam o conhecimento em política após uma rápida pesquisa no Wikipédia, enquanto as vítimas da desigualdade social, enquanto os  mal educados praticam a caridade, eles dissertam sobre a criminalidade.

O mundo está torto, as vias congestionadas, os noticiários vermelhos de sangue, o Palmeiras em má fase e nesse exato instante ela surge radiante, em meio a tanta injustiça, em meio a confusão ela aparece, penso em como é possível haver tanta desigualdade, estava ela em torno da nata da beleza mundial, no fluxo do maior evento esportivo que o mundo já teve, havia ali então belezas desiguais, uruguaias pálidas, colombianas escuras, argentinas magras, boliviana gordas, havia ali européias baixinhas, asiáticas altivas, marfinenses ricas e costa-riquenhas pobres, mas mais do que toda essa diversidade ali estava a brasilidade, ela sorria para esse machucado mundo em festa, um mundo com suas feridas atenuadas pela manha brasileira, pelo gesto tropical, pelo toque, pelo divino e pelo profano.

Havia claramente expresso naquele olhar sorridente a chave do bem e do mal, o sorriso acolhedor, convidativo, capaz de lenir a angústia dos chateados, ou um sorriso acolhedor, convidativo, capaz de ampliar a agonia dos indignados.

A energia contida nessas terras tropicais estava ali concentrada naquele sorriso sutil, pro bem ou pro mal quem o viu renasceu, conforme é proposto pelo nome dessa agente brasileira, os atingidos pelo sorriso nasceram novamente, como se houvesse uma segunda chance. Aos indignados foi dada a nova chance de aprenderem um pouco do que é o amor e aos chateados de voltarem a sorrir sem pudor. 

Viva ao Brasil, rumo ao hexa!

terça-feira, 3 de junho de 2014

Vestida para matar.




 Não seja tolo nobre homem, o seu requinte não irá me comprar, minha ambição é maior do que imaginas, nem só de pão e sapatos viverá a mulher, sua ingenuidade muito me espanta, mesmo com essa katana apoiada em seu pescoço você ainda não entendeu que sou mais afiada que sua conta bancária? O seu dinheiro é capaz de estuprar, capaz até de estripar, mas não necessariamente capaz de conquistar, com isso, levarei sua cabeça em sinal de conquista, Adeus!

 De nada valeu todo esse aparato de segurança, esse circuito interno de filmagem servirá apenas para registrar o seu fim, os ruídos do alarme servirão apenas para abafar seu desespero, abafar seus gritos promovidos por esse açoite, talvez nem Alá te ouça em meio a esse barulho infernal, que vergonha, seguranças de primeiro escalão treinados em Israel enganados por um simples sorriso, por esse mesmo sorriso que você quis escravizar, uma pena que essa barulheira abafará o estralo do seu pescoço, Adeus!

 Não chora meu bem, tamanha lamúria não diminuirá a injúria, tenha vergonha e não chore diante de uma mulher, o estrago que essa Magnum calibre 44 fará em sua testa te libertará de um mal maior,  me recuso a disparar enquanto essas lágrimas estiverem escorrendo, quero dar-te um fim digno, foi contigo que aprendi que da mulher nasce a poesia, embora elas sejam incapazes de escrever uma única estrofe por falta de fonte inspiradora, exemplo vivo (por enquanto) é este diante de mim, você, homens por essência são insuficientes para nos dar aquele frio na barriga, não posso negar que toda essa testosterona nos fazem vibrar, mas ainda assim é insuficiente, muito trivial, é preciso algo a mais e isso vocês não compreendem, as maravilhosas poesias bem como os maravilhosos cânticos entoados por vocês tentam entender e explicar um pouco de nós mulheres, saiba contudo meu bem que tudo isso é vão, é muito poderoso, porém não fatal, levante-se e descanse seus joelhos, mesmo contudo lhe darei a honra de cair de pé,  Adeus!

 Há quem condene meu julgamento, mas  não tolero farelos no meu novo carpete, nem tampouco manchas de lágrimas no meu piso envernizado, se voltar contra o belo pode ser cruel, pois o belo é capaz de cegar, o belo é capaz de trazer luz ao cego, pois na beleza até a crueldade é permitida , pois sim, beleza se põe na mesa, look out!  

terça-feira, 20 de maio de 2014

Gumbo


 Desvendar os caminhos, ferramentas e os meios necessários pra incentivar o uso de produtos daria aos fornecedores de tais produtos a solução para os problemas de comercialização.

 Desvendar os meios necessários pra incentivar o consumo de uma idéia daria ao difusor do plano a força necessária para garantir não somente o uso de produtos, garantiria também o poder de fidelização, permitiria ao autor da idéia ações de grande apelo público.

 Valeria pois então explorar os segredos contidos nos subterrâneos do Vaticano, valeria considerar as técnicas empregadas pelos grandes meios de comunicação que têm consigo a chave da morte e do inferno, que trazem pra si conforme seus interesses adeptos que seguirão religiosamente o que é proposto. 

 Nasce então a dúvida sobre o real valor embutido nos produtos, da autenticidade de um pensamento, dos agentes que produzem sentimentos, surge a incerteza da existência da espontaneidade, se de fato existe instinto, se existe essência ou se tudo isso foi extinto e tragado por uma grande idéia.

 A verdade é que nessa máquina existe primeiro mundo e também existe fome, a distribuição feita pelo detentor e difusor da grande idéia é desigual, Ele plantou o famoso e mentiroso clichê, "quem pode pode que não pode se sacode", assim, a desigualdade soa natural e com isso consumiremos o que Ele puser na prateleira, e não adianta reclamar, dizer que os produtos estão estragados, você não tem opção, mas Ele dirá pra você escolher melhor, e que é culpa sua se você comprou um produto estragado, pois bem lá no fundo da prateleira havia um produto razoável que evitaria essa enorme dor de barriga. 

 Assim, na prateleira próximo ao litoral sudeste temos Valesca popozuda, os insatisfeitos com essa opção reclamam a um dos gerentes e partem pra violência, agridem e amarram com justiça os pobres consumidores que roubam de seus bolsos o valioso Catra, na prateleira mais a baixo ainda no sudeste temos maconha, guerreiros do rap que duelam em batalhas pra ver quem consome mais, quem ostenta mais, quem fraseia melhor a filosofia de uma realidade vazia.

 Diferente da tendência, na prateleira do nordeste Jackson do Pandeiro disse que só botará bee bop no samba quando o Tio Sam tocar o tamborim, ele ignorou a grande idéia e misturou Miami com Copacabana, ignorou a presente prateleira e garimpou fora dela produtos naturais, produtos que não foram forjados pela pseuda intelectualidade manipulada pela grande idéia, algo essencial, sem referência, puro, livre de contaminação.

 Contudo, Jackson não escapou da mistura, foi contaminado por januário o kengo mais fino do nordeste, se apaixonou pela embriagada boca de Billie holiday, aprendeu a dançar com Juke do miserável viciado Walter Jacobs,  batucou o som dos morros cariocas quando eles ainda eram limpos e ganhou a alcunha de Pandeiro, não resistiu e eletrificou o triângulo, o som outrora acústico amplificou-se, todos esses ingredientes engrossaram o caldo da sopa, cheia de especiarias, contudo, todas livres de produtos tóxicos.

 Tomem dessa sopa, cheia de nutrientes e de caldo consistente, ela não causa dor de barriga, pois dessa sopa não se encontra na grande prateleira.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

27


Minha sobrinha completou sete anos e eu a parabenizei como se ela tivesse quinze, ela ficou extremamente feliz quando a fiz acreditar que eu estava comemorando seu décimo quinto ano de vida, chegar aos quinze anos de idade é a grande ambição de toda criança do ensino fundamental, seria como conquistar o respeito de todos, sob a sensação de liberdade e autonomia nas escolhas e decisões, adolescentes de quinze anos são observados pelas crianças mais novas como objeto de admiração, naquilo que elas pretendem se tornar.

Adolescentes de quinze anos vivem a intensa fase de transição da fase infantil para a fase adolescente onde se desenvolve a consciência do futuro e da vida adulta, surge assim os grandes anseios e planos para a vida futura, o adolescente é preso na ilusória mágica que os faz acreditar que são tão capazes quanto os adultos, passam então a projetar a carreira profissional, a vislumbrarem um futuro promissor associado às aptidões e vontades, essa empolgação que dá força ao sonho adolescente é própria da idade e muitas vezes os levam ao sucesso precoce.


Alguns anos adiante vem a decepção, o ex-adolescente se dá conta de que é impossível ser bem sucedido com 20 anos de idade, percebe com mais clareza as pedras no caminho, percebe o quão tenebroso é o sistema e a concorrência, esses benditos pés no chão do ex-adolescente o faz regredir alguns passos para em seguida retomá-los calcados na coerência, tal percepção sob o efeito da razão somado com a ressuscitada empolgação adolescente produz uma luz que o guiará pra anseios mais sólidos, à iminente realização, essa realização todavia não se trata do tão perseguido sucesso, mais sim do encontro com uma perspectiva palpável, o que permitirá ao adulto calouro galgar posições e conseguir ferramentas para realizações maiores.

Se estivermos falando de sucesso ou fracasso, um homem ainda que tenha muitas conquistas só terá a ilusão de estar bem sucedido a partir dos trinta anos, uma ilusão parecida com a do adolescente, ele consegue se enxergar realizado de alguma maneira, no entanto, ele perceberá que o divisor de águas que garantiu boas condições pra vida que seguirá surgiu entre 26 e 28 anos, período esse que costumo chamar de período da criatividade, onde se viveram grandes amores, grandes perigos, as grandes fraudes, as verdades verdadeiras.

Imagino que essa explosão de criatividade e improviso nesse período da vida seja porque o homem ou mulher de 26/28 anos são tão adolescentes quanto adultos, não é nem adolescente e nem adulto é exatamente os dois, essa vantagem o adulto e nem tampouco o adolescente têm, é um privilégio exclusivo do ser de 26/28 anos, do ser de 27 anos, 27 anos é o auge da forma do homem criativo, não estou falando de eficiência, qualidade, nada disso, me refiro à criação, à criatividade.

Robert Johnson, Janis e Hendrix que o digam. Morreram no auge. O mundo não resistiu à tamanha criatividade.  Tomem cuidado meus caros contemporâneos.